Disponibilização: segunda-feira, 14 de abril de 2014
Diário da Justiça Eletrônico - Caderno Judicial - 1ª Instância - Capital
São Paulo, Ano VII - Edição 1632
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da criança ou do adolescente. Sendo assim, a coexistência da parentalidade biológica e socioafetiva é fundamental para a
manutenção da estabilidade e integridade do núcleo familiar. Volto a repetir, a autora cresceu tendo como referência paterna o
corréu J.C., que, independentemente do registro civil e dos laços de sangue, com ela construiu um elo forte e sólido de afinco,
que era recíproco da parte de Isabela. As testemunhas confirmaram neste sentido (fls. 312/317). Inclusive, há entendimentos na
Terceira Turma da Colenda Corte Superior que enaltecem a importância da parentalidade socioafetiva na manutenção e
preservação da entidade familiar, que, como é cediço, está amparada pela especial proteção do Estado, ex vi do disposto no
artigo 226, caput, da Carta Magna. Direito civil. Família. Recurso Especial. Ação de anulação de registro de nascimento.
Ausência de vício de consentimento. Maternidade socioafetiva. Situação consolidada. Preponderância da preservação da
estabilidade familiar. (REsp 1.000.356/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Terceira Turma. Data do Julgamento: 25.05.2010). No
entanto, a genitora da autora fez questão de frisar que entre o corréu J.C. e a autora não existem vínculos afetivos. Entretanto,
não é este o cenário que nos é apresentado nestes autos. O complexo de provas que instruem esta demanda é suficientemente
apto a nos evidenciar que a própria Sra. I. reconheceu o liame afetivo existente entre o pai registral e Isabela, pois admitiu ser
estranho o fato de o réu sentir “adoração pela filha de outro homem” (fls. 160). No estudo psicológico, o expert apontou para o
relato contraditório e distinto da Sra. I. quanto à relação entre o corréu J.C. e a autora (fls. 191/192). Ora alegava que J.C. nutria
um amor incondicional por Isabela, sendo esse o motivo pelo qual a filha mais velha [I.] se sentia preterida pelo pai, ora alegava
que J.C. nunca foi afetivo com a menina, mostrando-se sempre uma pessoa fria e distante, fazendo questão de enfatizar que a
autora nutre carinho e afeto tão somente pelo pai biológico, com quem conversa por telefone e computador. A mesma contradição
permeou o relato do corréu S.F., segundo o qual “ele [J.C.] nunca deu amor para a I. que é filha dele, mas para I sempre deu
todo o amor e carinho” (fls. 197). O mesmo se constatou no depoimento pessoal do réu, eis que declarou, expressamente:
“achava estranho o fato de J.C. amar tanto uma filha que era fruto de um caso extraconjugal” (fls. 307). Resta-nos claro que a
intenção da genitora da autora, Sra. I., é meramente desconstituir o vínculo paterno-filial existente entre o corréu J.C. e I., com
vistas a satisfazer aos próprios anseios. Neste intento, o estudo psicológico concluiu que a Sra. I. manipula os sentimentos
alheios. Foi ela quem revelou os seus planos de morar na Itália, apontando a desconstituição da paternidade do corréu J.C.
como única forma de livremente viajar com a menina, sem que tenha que regulamentar o direito de visitas ou dar satisfação dos
seus atos a ele. Ao que nos parece a Sra. I. acomodou-se durante anos à situação do corréu J.C. como efetivo pai de I. Era ele
quem provia o lar e a educação das meninas, I. e I. Porém, quando não mais lhe era pertinente manter esta situação,
simplesmente ajuizou a presente ação para afastar o corréu J.C. de I. Neste sentido, peço licença para fazer das palavras do
perito as minhas: “consideramos altamente improvável a alegação da genitora de que era submetida moralmente e aprisionada
psicologicamente pelo requerido, e apenas por isso permaneceu com ele por 23 anos, além de permitir que J.C. criasse I. como
filha” (fls. 208). Durante o curso da instrução este fato ficou bastante claro, pois a Sra. I. alegou de forma veemente a ausência
de liame afetivo entre os dois. Contudo, a prova testemunhal e o estudo psicológico mostraram-se contrários a esta afirmação,
evidenciando o inverso. A genitora da autora lançou mão de manobras para imputar ao corréu J.C. uma conduta possessiva,
violenta e fria para com a família, principalmente para com a menina I. Todavia, não há provas nos autos que confirmem esta
versão. Pelo contrário, na entrevista realizada com I. (fls. 198/200), o perito desde logo constatou que o discurso da menina não
fluiu de modo espontâneo, mas sim de forma tímida e retraída, e até mesmo coagida. Na perícia técnica o Psicólogo percebeu
no discurso de I. a tentativa reiterada de omitir a existência de J.C. da sua vida e memória, ocultando-o dos passeios, viagens,
aniversários etc. Em um dos momentos, I. quase pronunciou a palavra “pai”, mas tão logo se corrigiu e chamou o pai registral
pelo nome. A este respeito o corréu J.C. alertou para a mudança de comportamento da autora após a separação dos genitores.
Segundo ele, a filha não mais o chama de “pai”, mas sim de “ou”, “ei”, ou então o cutuca ou o puxa pela roupa para receber
atenção (fls. 304). O psicólogo consignou também que I. se referia ao corréu como “Zé”, descrevendo-o como uma pessoa
violenta e agressiva, que maltratava a genitora e o pai biológico antes mesmo dela nascer. Entretanto, indagada como seria
possível conhecer um fato anterior ao próprio nascimento, ela, inocentemente, disse que a mãe lhe havia dito isso. Portanto,
restou evidente o temor incutido na autora, pois, embora tenha negado qualquer agressão física e/ou psicológica porventura
cometida pelo corréu J.C. contra ela, ainda assim ficou receosa e temerosa com a possibilidade de um encontro entre eles,
justificando que “ele [J.C.] pode fazer algo de ruim para mim” (fls. 200). Veja-se, a autora é apenas uma criança de oito anos de
idade, sendo bastante estranho uma menina nesta idade apresentar capacidade para tamanha simulação. O Psicólogo constatou
que, além do esforço da autora para negar a presença física e afetiva do pai registral, há ainda o discurso persuasivo de I.
quanto ao afeto incondicional que sente pelo pai biológico, pessoa com quem praticamente não teve contato. Com efeito, “além
de passar para a filha a ideia de que J.C. nunca mereceu ser chamado de pai, ficou claro que a genitora foi a responsável pela
idealização que I. faz sobre a figura de S.” (fls. 206). Depreende-se, pois, que a genitora da autora reconhece a existência de
afetividade entre a filha e o corréu J.C. A conclusão da perícia foi no sentido de que o pai registral sempre se fez presente na
vida da autora, senão vejamos: “[...] não apenas J.C. funcionou como figura paterna presente e afetiva na vida de I., como o fez
de maneira privilegiada. Ainda que os aspectos envolvidos nesse privilégio possam envolver falhas do genitor, por exemplo em
querer, mais maduro, compensar com a filha mais nova os erros que percebe ter cometido com a mais velha, ou ainda que tenha
querido, com tanto apego e dedicação à I., mostrar à própria requerente sua ‘natureza boa e magnânima’ frente à traição
cometida, o fato é que para I. tanta dedicação e preferência não pode ser apagada como se nunca tivesse existido, nem
tampouco substituída por uma outra relação idealizada por terceiros” (fls. 209/210). Outra questão de suma importância diz
respeito à consideração da alienação parental praticada pela Sra. I. como evidência apta a demonstrar a existência de uma
relação afetiva entre o corréu J.C. e I. Conforme esclarecido na perícia, “não haveria motivos para a genitora submeter a filha a
tão forte pressão e manipulação de afetos e memórias se a relação fosse de fato tão pífia como ela se esforçou em nos fazer
crer” (fls. 210). Corrobora com esta tese o depoimento pessoal da genitora da autora, que novamente nos pareceu bastante
incoerente e permeado de tentativas inócuas de justificar o injustificável. Soa inacreditável que uma criança de apenas dois
anos de idade seja capaz do discernimento necessário para dissimular ao ponto de na presença do pai registral o chamar de
“papai” e na sua ausência o chamar de “Zé”. Ela alegou também que teve receio de ajuizar esta demanda antes porque tinha
medo do que o corréu J.C. podia fazer a ela e a família. Contudo, indagada por esta Magistrada, ela mesma admitiu que “J.C.
não batia nas meninas e nunca representou perigo para a família” (fls. 302). No mais, ela própria reconheceu a autoria da carta
de fls. 97/98 e da confecção da árvore genealógica de fls. 104. Quanto a este artesanato, reputo totalmente fugaz a justificativa
da genitora de que a ideia inicial era fazer apenas uma árvore, exatamente estruturada daquela forma sem, no entanto, inserir
os nomes dos familiares. Não restam dúvidas acerca dos vínculos afetivos que permeiam o relacionamento pai-filha construído
entre o corréu J.C. e a menina ao longo de pelo menos cinco anos da vida da autora. Igualmente, as testemunhas da autora
confirmaram a paternidade e a afetividade que existe entre o corréu S.F. e I. Portanto, passemos a esmiuçar os efeitos jurídicos
da multiparentalidade. Entende-se por multiparentalidade a coexistência pacífica e harmoniosa de vínculos parentais afetivos e
biológicos, de modo a viabilizar que alguém tenha reconhecido dois pais, ou duas mães, ou dois pais e duas mães, no próprio
registro de nascimento. Assim como a filiação biológica, a filiação socioafetiva é igualmente irrevogável, pois reflete o direito
Publicação Oficial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Lei Federal nº 11.419/06, art. 4º